Carmem, Lucila e a flor
Veja nessa história, como conflitos e relações mal construídas podem se transformar com a simples e linda presença de quem chega sem pedir nada; apenas amor.
Lucila
Lucila foi uma mulher carregada de dores e de muitos amores. Compreendeu, ainda que tardiamente, que coexistimos com desejos que transitam entre grandes frustrações. Era cheia de vida. Bela, intensa, filha única, profundamente amada por seu pai e por aqueles com quem nutria afinidade. De sua parte, devolvia sempre muito amor e respeito.
Quanto à mãe… apenas respeito, por ser mãe.
“Lalinha, minha filha, minha vida… vem com papai.”
Assim Eulálio costumava chamá-la, todas as vezes em que chegava do trabalho. Era ela a alegria e a satisfação da sua existência.
Lucila cresceu assim: envolta em muito carinho paterno e sob o desprezo silencioso de sua mãe, Carmen.
Carmem
Carmen nunca desejou ser mãe. Deixou isso claro a Eulálio desde o início de seu relacionamento. Mas ele, respeitoso e amoroso, aceitou, até o momento em que ela descobriu a gravidez. Carmen demonstrou, sem rodeios, seu descontentamento.
Naquele dia, Eulálio, tomado de emoção e firmeza, respondeu-lhe:
“Nem pense em cometer esse crime. Não foi planejado, eu sei, mas aconteceu. Vamos ter esse bebê, sim! Eu estarei ao seu lado, te darei todo o apoio para tornar esse processo o mais suave possível. Por favor, não desista dessa vida que nos foi dada como presente… Uma vida é isso: um presente. Você vive, eu vivo, estamos vivos, conhecemos o mundo… Não tire esse privilégio dessa criança inocente, que não tem culpa das nossas frustrações. O que está feito, está feito. Eu te amo… e amo essa criança também.”
Diante dos apelos e da entrega amorosa do marido, Carmen recuou de sua intenção inicial e decidiu seguir com a gestação.
Os meses se passaram, e Eulálio, assim como Carmen, dedicaram todo o cuidado e carinho que uma gestação requer. Carmen, com o tempo, foi se afeiçoando à criança que compartilhava o seu corpo. Claro, houve momentos de angústia, de dúvida, de lágrimas escondidas… Mas, sempre orientada pelo marido, pelo médico, por toda a família e pelos amigos, conseguia superar os desafios próprios daquele tempo de espera. E, obviamente, contava com a presença inabalável de Eulálio, seu maior amparo.
Quando o momento do nascimento chegou, Lucila foi recebida com festa, gratidão, satisfação, alegria… mas também com uma sutil camada de preocupação e incerteza. Uma nova fase se iniciava. Carmen precisaria de mais ajuda agora do que nunca.
Com o passar do tempo, Carmen percebeu que o marido dedicava uma atenção especial, exclusiva, à filha — e, a seu ver, um sutil desprezo à esposa. Assim ela sentia… assim ela pensava.
Ali, silenciosamente, começou um distanciamento, quase imperceptível, entre Carmen, o marido e a própria filha. Carmen se via, então, como apenas uma máquina de reprodução, um vaso, um papel secundário, apenas o recipiente de uma flor. Pensava que o papel de ser mãe era coadjuvante, quase invisível.
Os pensamentos distorcidos de Carmen, enraizados nesse sentimento de perda, cresceram silenciosos até se tornarem um tormento. Um tormento que a perseguiu por uma vida inteira, até que, um dia, a morte chegou para Eulálio.
Esse foi um golpe duríssimo. Para Carmen… e para Lucila.
Cinzas
A morte de Eulálio foi o primeiro grande abismo que Lucila e Carmen precisaram atravessar. Mas não o atravessaram juntas. Cada uma, ao seu modo, mergulhou na própria dor, criando muros onde talvez devessem ter construído pontes.
Para Carmen, a ausência do marido foi o colapso silencioso de uma vida inteira dedicada ao papel de esposa obediente, mesmo que ressentida. E para Lucila, a perda do pai foi como ter arrancada a única raiz afetiva que realmente conhecia.
A partir dali, os conflitos entre mãe e filha, antes latentes, explodiram em gritos, portas batidas, silêncios cortantes. Carmen, acuada pela culpa e pelo remorso, via-se incapaz de alcançar a filha, como se as palavras lhe faltassem, como se todo o amor que nunca conseguiu expressar estivesse bloqueado por uma pedra que ela mesma não sabia como mover.
Lucila, por sua vez, buscava nos excessos o alívio que não encontrava em casa. Fugia de si mesma e da mãe, enredando-se entre drogas e homens que a faziam esquecer, ainda que por algumas horas, da dor funda que carregava desde sempre. Vagava por festas, noites sem fim, amizades passageiras, amores tóxicos, até que o vazio se tornava ainda maior do que a fuga.
Carmen observava a filha definhar e se perder, mas não sabia como salvá-la. Tentava repreender, tentava alertar… mas cada tentativa era recebida como uma acusação, uma invasão. O desespero se alojou dentro dela, corroendo suas forças, alimentado por um sentimento antigo, sufocante: a culpa. A culpa de não ter desejado ser mãe, de não ter acolhido Lucila desde o início, de não ter sido capaz de amar como Eulálio amou.
A Flor
E foi então que o inesperado aconteceu: Lucila engravidou. Nem ela mesma soube dizer de qual dos seus amores efêmeros era o pai. A notícia caiu como um raio sobre as duas. Carmen, devastada, temeu pelo futuro da filha e da criança. Lucila, por sua vez, oscilava entre a revolta, a negação e um medo visceral.
Mas algo dentro de Carmen começou a mudar.
Ao ver a filha tão frágil, tão parecida com ela mesma naquela juventude marcada por escolhas difíceis, uma fresta se abriu. Não sabia de onde vinha, mas sentiu, pela primeira vez, uma vontade genuína de estar ali, inteira, como mãe, como amparo, como amor.
Passou a cuidar de Lucila com uma ternura que jamais imaginou que existisse em si. Ajudava-a com os exames, preparava-lhe refeições, acompanhava suas noites insones, oferecia-lhe um colo silencioso nos dias de angústia.
Lucila, no início, desconfiou. Não sabia lidar com aquele afeto tão novo vindo da mãe que sempre lhe parecera fria, distante. Mas, aos poucos, foi se permitindo repousar naquele aconchego que nunca conhecera.
O nascimento da neta foi o verdadeiro renascimento de Carmen.
Ao segurar a criança nos braços, frágil e perfeita, ela sentiu um amor que não coube em palavras, mas que transbordou em lágrimas. E, nesse instante, ao olhar para Lucila, exausta e emocionada, percebeu, enfim, a mulher que a filha havia se tornado: forte, sobrevivente, inteira, apesar de tudo.
E Lucila, ao ver a mãe ali, tão entregue, tão doce com a neta, deixou que o rancor que a sustentara por tantos anos se dissolvesse, como uma névoa que se dissipa com o sol.
Assim, mãe e filha se reencontraram.
A vida, sempre imprevisível e dura, agora lhes oferecia uma nova chance: a de descobrirem, uma na outra, um amor que havia estado adormecido, talvez sufocado, mas nunca ausente.
E, entre Carmen, Lucila e aquela pequena e nova vida, nasceu, enfim, o amor pleno. Um amor que, apesar de tardio, era verdadeiro. E que, justamente por isso, talvez fosse ainda mais forte.
“E foi assim: entre mágoas e silêncios, uma flor rompeu o tempo e ensinou-as a amar.”
Espero que essa história tenha, de alguma forma, demonstrado como a vida sempre encontra maneiras de nos ensinar, ainda que, muitas vezes, seja através de muito sofrimento; a reunir o que nós tentamos separar.
😊Espero que tenha gostado!
Deixe o seu comentário!
Comentários
Postar um comentário