A Influência Africana na Língua Portuguesa do Brasil


Vozes que Resistem, Palavras que Permanecem

A formação da língua portuguesa falada no Brasil é uma história de encontros, trocas e conflitos. Um dos capítulos mais profundos e potentes dessa história começa com a chegada forçada de milhões de africanos escravizados, entre os séculos XVI e XIX. Retirados violentamente de seus territórios de origem, eles desembarcaram em solo brasileiro trazendo não apenas seus corpos e saberes, mas também suas línguas, visões de mundo e formas próprias de expressão. E foi nesse contato — muitas vezes marcado pela dor, mas também pela resistência — que o português do Brasil se transformou, ganhando novas camadas de sentido e riqueza cultural.

Os povos africanos que vieram para o Brasil falavam línguas muito diversas, como o iorubá, o quimbundo, o umbundo, o ewe-fon, entre muitas outras. Essas línguas pertencem a diferentes famílias linguísticas do continente africano, e cada uma delas carrega estruturas gramaticais, sonoridades e conceitos próprios. Ao se depararem com o português europeu, essas línguas não desapareceram. Pelo contrário, elas dialogaram com o idioma dominante, mesmo em meio a políticas de repressão linguística, e deixaram marcas profundas que até hoje estão presentes na fala cotidiana dos brasileiros.


O vocabulário que resiste

Muitas palavras que usamos todos os dias têm origem africana, mesmo que isso nem sempre seja percebido. Na culinária, termos como acarajé, vatapá, mungunzá e quindim são exemplos de receitas afro-brasileiras que, além do sabor, carregam um vocabulário de origem africana, principalmente iorubá e bantu. Na religiosidade, palavras como orixá, candomblé, axé e ebó revelam a força da herança espiritual dos povos africanos, muitas vezes alvo de preconceito, mas fundamentais para compreender a diversidade cultural brasileira.

Na música e na dança, expressões como berimbau, atabaque, samba, capoeira e maracatu mostram como a oralidade africana não apenas contribuiu com sons e instrumentos, mas também com ritmos de fala, métricas e performances que hoje são símbolo nacional. Até mesmo expressões afetivas como moleque (do quimbundo muléke) e dengo (de origem banta) fazem parte do vocabulário popular, expressando sentimentos, brincadeiras e afetos.


Sonoridades e estruturas herdadas

Mas a influência africana vai além das palavras. Ela também está presente na forma como o português é falado em diversas regiões do Brasil. Em estados como Bahia, Maranhão, Pernambuco, Alagoas, Minas Gerais e Rio de Janeiro, por exemplo, é possível perceber traços de pronúncia, entonação e até construção frasal que foram moldados a partir do contato com as línguas africanas.

A musicalidade da fala, o uso expressivo do corpo na comunicação oral, a ênfase em certos sons ou sílabas, e até a cadência com que se constrói uma conversa carregam marcas de uma ancestralidade linguística africana. Em regiões onde havia maior concentração de africanos escravizados, como no Recôncavo Baiano ou em certas áreas de Minas, o modo de falar o português se distanciou ainda mais do europeu, criando formas regionais com forte sabor africano.


Oralidade, resistência e herança cultural

É importante lembrar que, durante o período da escravidão, a língua portuguesa foi imposta como instrumento de dominação, e o uso das línguas africanas era proibido ou reprimido. Mesmo assim, muitos africanos e seus descendentes conseguiram preservar suas formas de falar, contar histórias, cantar e celebrar seus deuses. A oralidade foi, portanto, um espaço de resistência e sobrevivência.

A riqueza de provérbios, expressões populares, narrativas orais e canções de trabalho que atravessam o Brasil até hoje são fruto desse legado africano. Muitos desses elementos foram incorporados ao português brasileiro, mas continuam sendo heranças de um modo de ver e sentir o mundo que vem da África.


Uma língua mestiça, viva e plural

O português falado no Brasil é, portanto, uma língua mestiça, viva e em constante transformação. Não se trata apenas de uma adaptação colonial, mas de uma criação coletiva marcada pela força e criatividade dos povos africanos. Essa contribuição africana à língua portuguesa brasileira é indissociável da nossa identidade — está nas palavras que dizemos, nos ritmos que cantamos, nos gestos que usamos ao falar.

Reconhecer essa influência não é apenas valorizar uma parte esquecida da nossa história linguística. É também afirmar que a língua é um território de memória, resistência e transformação — e que os povos africanos, mesmo em condições de opressão extrema, deixaram uma marca indelével na alma do Brasil.



Referências Bibliográficas

  • LODY, Raul. A presença africana na formação da cultura brasileira. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.

  • CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. Salvador: EDUFBA, 2001.

  • FARIA, Ana Cristina. “Línguas africanas e o português do Brasil: um breve panorama.” Revista da ABRALIN, v. 18, n. 1, 2019.

  • MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. O português afro-brasileiro: a formação do português popular do Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.

  • ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988.



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